20090306

No aconchego da Amazonia II

Breve nota explicativa: este texto foi escrito há cerca de 2 semanas atrás, mas só agora tive os meios e a disponibilidade para o publicar...



Primeiro dia de viagem, a bordo do "Cidade de Manicoré". Qual criança pequena, olho deslumbrada para o colorido das redes que balançam suaves nos dois convés, ouço os ruídos ecoados por algumas centenas de pessoas e várias toneladas de mercadoria com as quais partilharei os próximos dias. Subo rapidamente á àrea superior a "área de lazer" e fico ali, só contemplando o presente magnífico que a natureza me oferece naquele momento. O "encontro das águas": Rio Solimões (Amazonas) e Rio Negro encontram-se e seguem lado a lado, sem se misturarem. Aos poucos a água negra entra na água barrenta, aos poucos uma recua, a outra avança. Aos poucos cria-se a dança das águas que convivem sem perder a sua essência...



A minha mente vagueia por um milhão de analogias possíveis nas relações humanas... . Como seria bom, se como reflexo das águas, cada pessoa ou mesmo cada nação respeitasse a outra na sua unicidade e permanecessem lado a lado, num constante jogo de receber-oferecer. Utopia?

De volta ao convés, rapidamente surgem as conversas, um olá aqui, um sorriso ali, e assim, naturalmente começo a conhecer as histórias de vida que viajam comigo. Uma verdadeira amostra do povo manicoreense. Ali viaja a mãe adolescente com a filha e a avó-mãe, mas também noutra família, o pai adolescente. Viaja o jovem e o menos jovem que foram para a cidade grande na busca de um emprego melhor, na senda de uma vida mais digna, e que voltam três meses de miséria depois. Não encontraram trabalho nem vida mais digna. Viaja o cidadão consciente e activo que sofre com as injustiças políticas na sua cidade, mas também o cidadão "classe alta" que encontrou uma forma de subir na vida em troca de "pequenos favores políticos". As histórias sucedem-se... e eu... eu procuro ouvir apenas...

Durante a noite, o romantismo imaginado de dormir na rede pendurada no convés de um barco foi rapidamente desmistificado, para logo ganhar novo significado. No convés, sobrelotado, as redes sobrepõe-se, cruzam-se num equilíbrio ténue. O espaço entre elas é apenas o suficiente para não se encostarem. A sensação de aperto, de falta de espaço. Mas a rede embala, protege... e chega a sensaçao de aconchego. O aconchego de uma rede pendurada no convés de um barco que navega no rio Amazonas. Não havendo palavras para descrever a sensação, chamo-lhe apenas paz... paz interior...

A viagem continua, mais um dia, mais uma noite e um novo dia. A cada paragem uma nova movimentação: pessoas que entram, pessoas que saem, mercadorias que entram, mercadorias que saem. Na verdade, a chegada do barco representa para muitos a oportunidade de ganhar o dinheiro para o arroz e feijao do dia. Enquanto ancora na margem, logo os pequenos vendedores de tapioquinhas e bombons de cupuaçu saltam para o barco, os carregadores corpulentos logo começam a descarregar as mercadorias, os moto-taxis aguardam na esperança de mais um transporte. Entre as mercadorias encontra-se quase tudo, móveis novos e usados, electrodomésticos novos e usados, batatas fritas, refrigerantes, águas, motos e tantas outras coisas. É assustadora a dependência que as cidades do interior ainda vivem face à capital...

Alguém perto de mim comenta: estamos a chegar! Fecho momentaneamente os olhos e rezo uma pequena oração pedindo a Deus a força, a abertura de espírito, a inteligência, a doação necessárias para mais este recomeço...

Já se avista Manicoré.

Chegamos.